Líderes religiosos e museu vivem impasse sobre gestão de peças sagradas; acervo passou 50 anos com a polícia

  • 24/09/2025
(Foto: Reprodução)
Acervo de peças sagradas é motivo de disputa institucional Um conjunto de mais de 500 peças de religiões de matriz africana - incluindo os primeiros objetos que foram tombados na história do Brasil - que ficaram por mais de meio século com a polícia do Rio de Janeiro, estão no centro de um imbróglio institucional. Depois de anos de lutas, lideranças religiosas promoveram a transferência desses objetos para o Museu da República. Mas, agora, o grupo e a atual direção do museu divergem sobre o modelo de gestão dos itens. Os líderes de santo querem constituir um grupo de gestão compartilhada do acervo, com Mãe Menizinha de Oxum, considerada protagonista do projeto, como presidente. A proposta não é rejeitada pelo museu e pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), mas as instituições apontam dificuldades na sua formalização, devido ao ineditismo do modelo. O acervo Nosso Sagrado, chegou ao museu em 2020. A ideia era que, no novo endereço, ele fosse estudado e colocado em exposição. Líderes religiosos e museus vivem impasse sobre gestão de peças raras Até a véspera deste domingo (21), que marca o aniversário de cinco anos da mudança, no entanto, o público continua sem acesso a essa parte da história do país. A exposição começou a ser montada, mas foi adiada, oito vezes, a pedido da instituição. Nesta reportagem, o g1 explica o atual impasse e conta a história do conjunto, que inclui imagens, instrumentos musicais, guias e vestimentas. Fachada do Museu da República, no Palácio do Catete. Alexandre Macieira / Riotur 📱Baixe o app do g1 para ver notícias do RJ em tempo real e de graça Uma missão de vida Uma pessoa fundamental no processo da recuperação do acervo por religiosos e pela comunidade científica foi Mãe Meninazinha de Oxum. "A frase era essa: as nossas coisas que estão nas mãos da polícia", lembrou Mãe Meninazinha de Oxum, em depoimento ao g1, sobre as conversas que teve com sua avó sobre as peças. "Ela dizia que eu que tinha que vir para cumprir essa missão." Mãe Meninazinha de Oxum, no terreiro Ilê Omolú e Oxum. Reprodução A ialorixá ouviu, quando criança, muitas histórias sobre um lugar que reunia centenas de objetos sagrados dos povos de terreiro, que tinham sido levados em batidas policiais. "Na época, muitos babalorixás e Ialorixás foram agredidos fisicamente pela polícia", conta a Mãe. "E eles adentravam os terreiros com cavalo e tudo, quebravam tudo. E o que restou eles levaram para o Museu da Polícia, como prova de crime." Nas primeiras décadas da República brasileira, as práticas das religiões de matriz africanas eram criminalizadas. "Eu queria saber que coisas eram essas. E fui procurar", disse a Mãe. "E nossas coisas é o nosso sagrado." Fábio Júdice foi conhecer o Museu Memorial Iyá Davina Iyalorixá do Ilê Omolú e Oxum, Mãe Meninazinha já era envolvida com a preservação da memória de seu povo e tinha inclusive criado, no fim dos anos 90, o Museu Memorial Iyá Davina, em São João de Meriti (veja no vídeo acima mais sobre a iniciativa). A partir de 2017 ela liderou também o movimento "Liberte Nosso Sagrado", juntamente com outras lideranças religiosas da umbanda e candomblé, para tentar recuperar as peças que ficavam na polícia. No dia 21 de setembro de 2020, os 519 objetos foram finalmente transferidos definitivamente para o Museu da República. Parte do acervo incluía os primeiros bens móveis que foram tombados no Brasil. Abebé do acervo Nosso Sagrado. Cortesia Oscar Liberal O primeiro tombamento Fundado em 1937, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), só tinha atuado na preservação de patrimônio arquitetônico, até que, em 1938, esses objetos, cerca de 125 itens, foram inscritos no Livro do Tombo. Vanessa Pereira, coordenadora geral de Identificação e Reconhecimento do Iphan, conta que a "Coleção Museu da Magia Negra", como foi nomeada à época, era enxergada como "um gabinete de curiosidades". Vanessa disse, ainda, que além de permeado de preconceitos, o trabalho da década de 30 era "genérico", feito por pessoas que não conheciam a cultura dos povos de terreiro. Muitos objetos foram classificados com nomenclaturas incorretas, por exemplo. Para ela, a história do acervo é emblemática na trajetória do Instituto que, quase nove décadas depois, se debruçou, novamente, sobre as peças para requalificar o tombamento original. "O que eu acho mais interessante é que esse trabalho todo está sendo feito com um grupo de consultores que são os verdadeiros detentores desses bens. Ou seja, são as lideranças religiosas", disse a arquiteta. E o primeiro passo promovido pelos povos de terreiro foi a mudança no nome e no endereço desse patrimônio. O Nosso Sagrado A partir da campanha "Liberte o Nosso Sagrado", promovida pela comunidade de santo, o acervo finalmente foi tirado das mãos da polícia. Rebatizado, o Nosso Sagrado chegou ao Museu da República no dia 21 de setembro de 2020.O momento foi celebrado como uma grande vitória pelo grupo, mas não era o final da luta. Lideranças religiosas entram no Museu da República em cerimônia simbólica no dia da transferência do acervo. Elisângela Leite/Quiprocó Filmes A partir de então, um grupo de pesquisadores passou a se debruçar sobre as peças para estudá-las à luz dos conhecimentos dos povos de terreiro. Uma exposição também começou a ser organizada, com a curadoria feita por pessoas da comunidade de santo. "E eles deram um baile, deram um baile, sabe?", disse o museólogo Marco Antônio Teobaldo de Oxóssi. Mas a inauguração, prevista para o final de 2023, foi adiada. "As paredes já foram pintadas. Os textos já estão prontos. A museografia já está pronta. Todos os objetos sagrados já foram selecionados. Cada um para uma sala, contando uma história. E a exposição simplesmente foi cancelada", relatou Teobaldo. A instituição alegou que o prédio tinha problemas estruturais (Veja tudo o que o museu fala sobre o caso no fim da reportagem). O curador diz que não tem recebido informações concretas da direção do museu e do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). "As justificativas foram várias, do Ibram, e sempre com entraves burocráticos, com impossibilidades, com resoluções, com tratativas dizendo que precisava rever todo o orçamento, que precisava analisar a documentação. Mas não deu data", conta o museólogo. Ele relata, ainda, que o Ministério Público Federal (MPF) chegou a cobrar um posicionamento da instituição. "E essa resposta não acontece." Para ele, é muito importante que o público possa conhecer o acervo. "É só o que nós queremos: contar a nossa história, a partir do nosso ponto de vista", disse. "Nós não queremos O Nosso Sagrado preso novamente." De quem é a palavra final? O adiamento na exposição acontece em meio a uma disputa a respeito de quem deve ter a última palavra sobre o destino das peças sagradas. As lideranças religiosas querem que um grupo de gestão compartilhado seja reconhecido e que a presidência seja de Mãe Meninazinha, por sua senioridade e seu protagonismo na campanha "Liberte o Nosso Sagrado". Imagens do acervo foram registradas pelo fotógrafo do Iphan Oscar Liberal. Cortesia Oscar Liberal "Tem que ser do povo de terreiro. Nós é que sabemos falar de nós mesmos. Não sabem falar de nós, nós é que sabemos. É o povo de terreiro", disse a Iyalorixá, sobre a gestão do acervo. "Claro que precisamos de ajuda, mas somos nós que temos que ter a palavra." Segundo a defensora pública federal, Natália Von Rondow, essa proposta não tem sido aceita pela direção do museu. Ela explicou ao g1 que a tutela do povo de santo é importante porque as instituições acadêmicas frequentemente desconhecem as tradições afro-brasileiras. "As vezes um fio de contas está rompido. Se você conversa com o museólogo, ele vai ter o desejo de recompor esse fio, de tentar restaurar. Mas, as comunidades tradicionais vão ter um outro entendimento", disse Natália. "É necessário que, para que seja restaurado, passe por toda uma ritualística." Peça do acervo Nosso Sagrado. Reprodução Além disso, devolver as peças para as mãos das comunidades de santo, seria, para a defensora, um gesto de reparação. "Esse acervo não era para ter virado um acervo. Essas peças sagradas não eram para estar no museu. Se elas estão no museu, se elas viraram um acervo, é porque existiu uma violência subjacente, uma violência por trás da transformação desse patrimônio cultural", disse ela. Mário Chagas, que era diretor do museu à época da transferência, confirmou ao g1 que concordou com esse modelo de gestão, mas não chegou a formalizar o acordo. Mesmo assim, os líderes de terreiro já atuavam em parceria com a instituição. "E daí que vem o nome de gestão compartilhada. É o Estado, com o seu conhecimento, da museologia, necessários para a preservação desse patrimônio e desses bens, conversando com os saberes tradicionais das comunidades de terreiro", explica Natália. O problema, segundo contaram a defensora, Teobaldo de Oxóssi e Mãe Meninazinha de Oxum, começou depois que Ana Cecília Lima Sant’ Ana assumiu, como substituta, a direção do Museu da República. Imagem do acervo Nosso Sagrado. Reprodução Em nota, a instituição disse, ao g1, que não se opõe à reivindicação de constituição do grupo de gestão compartilhada, mas não alcançou consenso sobre forma jurídica de oficialização dos termos da proposta. A dificuldade, segundo o museu, estaria no ineditismo do modelo. (Veja tudo o que o museu fala sobre o caso no fim da reportagem) Já o Ibram afirmou que está discutindo a minuta da portaria que regulamentará o grupo diretamente com seus integrantes, buscando garantir a devida legalidade e instrução processual. (Veja tudo o que o Ibram fala sobre o caso no fim da reportagem Inovação Jurídica Para Natália, no entanto, a novidade da proposta não deveria ser considerada um empecilho e sim uma oportunidade. Atabaques do acervo Nosso Sagrado. Reprodução "O que a gente vai ter que fazer é abrir novos caminhos, deixar que o Nosso Sagrado abra novos caminhos, escute as lideranças e os povos de terreiro, para poder renovar e reconfigurar essa reparação dentro do Estado", disse a defensora. Integrante um grupo de estudos na Defensoria Pública da União que aborda esse tema - as formas jurídicas do direito à reparação para comunidades tradicionais - ela acredita que seja possível atender às demandas dos povos de axé. Para isso ela entende que é preciso escutar as reinvindicações dessa população. "O que não está acontecendo é a escuta do Estado", disse. Natália acredita, ainda, que uma solução para a gestão do Nosso Sagrado pode ser um passo importante em direção ao estabelecimento de políticas reparatórias no país. Para ela, funcionária como um precedente para a gestão das "coleções irmãs", outros acervos, constituídos de formas semelhantes, em vários estados da nação. A Coleção Xangô, em Pernambuco, a Coleção Afro-pernambucana, que está em São Paulo, Coleção Perseverança, de Alagoas, assim como as coleções Estácio Lima e Afro, na Bahia, são alguns exemplos. "A história do Nosso Sagrado é a história do Brasil. E ela precisa ser contada", disse Natália. Peça do acervo Nosso Sagrado. Reprodução O que dizem os citados O g1 entrou em contato com o Instituto Brasileiro de Museus e o Museu da República, e convidou a Diretora Substituta Ana Cecília Lima Sant’ Ana para uma entrevista, mas as instituições preferiram responder por escrito. O Ibram se pronunciou com a seguinte nota: "Posicionamento do Ibram, responsável pela gestão do Museu. Agradecemos o contato e o interesse em abordar o tema do Acervo Nosso Sagrado. 1) Formalização do Grupo de Gestão Compartilhada O Instituto Brasileiro de Museus atua para formalizar o Grupo de Gestão Compartilhada, que nunca chegou a ser institucionalizado desde sua criação. A minuta da portaria que regulamentará o grupo no âmbito do Ibram está sendo discutida diretamente com seus integrantes, buscando garantir a devida legalidade e instrução processual, com representatividade, segurança jurídica e transparência no processo. 2) Diálogo institucional Com a atual direção do Museu da República, as tratativas de diálogo foram e continuam sendo mantidas, por meio de canais e ferramentas oficiais. O Grupo de Gestão Compartilhada vem sendo consultado e convocado para debates sobre todas as ações relacionadas ao Acervo Nosso Sagrado. Trata-se de um debate de natureza institucional, conduzido no âmbito das atribuições do Ibram, e não vinculado à figura de qualquer gestão anterior. 3) Acesso para pesquisas Para as ações relacionadas ao acesso e desenvolvimento de pesquisas com o acervo, está em discussão um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) entre a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), o Ibram e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), visando garantir que os trabalhos acadêmicos e técnicos sejam realizados com a devida institucionalização administrativa, preservação e segurança do acervo e de pesquisadores, e respeito às diretrizes do Grupo de Gestão Compartilhada. O Ibram reforça seu compromisso com a preservação, a gestão participativa e o respeito às comunidades e instituições envolvidas." Initial plugin text Já o Museu da República disse: "O Museu da República (Ibram) não se opõe à reivindicação de constituição do grupo de gestão compartilhada do Acervo Nosso Sagrado. Cabe destacar que o grupo já vem atuando no Museu, com amplo e irrestrito acesso ao acervo, desde sua chegada à Reserva Técnica. Entretanto, até o momento não se alcançou consenso quanto à forma jurídica de oficialização dos termos dessa gestão, bem como quanto às responsabilidades específicas a serem assumidas por seus membros. Trata-se de um modelo inédito de participação social de gestão compartilhada, que requer construção conjunta entre o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), representado pelo Museu da República, e a sociedade civil. Por se tratar de um Grupo de Trabalho o assunto foi submetido à análise jurídica da Procuradoria Federal junto ao Ibram. Sobre a exposição do Acervo Nosso Sagrado Não houve cancelamento da exposição, mas sim impossibilidade momentânea de sua implementação no edifício do Palácio do Catete. É importante registrar que, entre 2023 e o primeiro semestre de 2024, a inauguração foi anunciada oito vezes e adiada oito vezes, por motivos ainda em apuração. Atualmente, a gestão do Museu da República e o Ibram reafirmam o compromisso de realizar a exposição tão logo o Palácio reúna as condições necessárias para recebê-la, visto que está em andamento o contrato de elaboração do projeto completo de restauração integral do Museu da República. Contexto: situação atual do Palácio do Catete Conforme já informado no site do museu e à imprensa: "O Museu da República, unidade vinculada ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram/Minc), anuncia a reabertura parcial do Palácio do Catete a partir de 16 de julho de 2025. Fechado desde fevereiro para análises estruturais, o edifício histórico reabre seu primeiro pavimento para visitação, marcando uma nova etapa no processo de restauração completa do complexo arquitetônico e paisagístico. O trabalho realizado nos últimos meses é inédito na história do museu: foram feitas prospecções técnicas em pisos e paredes, com acompanhamento de engenheiros, arquitetos, especialistas em restauro e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Pela primeira vez, o sistema estrutural do Palácio foi mapeado e diagnosticado integralmente, possibilitando um conhecimento aprofundado sobre as condições do edifício, orientando as ações de restauro necessárias, sempre priorizando a mínima intervenção no patrimônio. A análise técnica revelou a necessidade de novos serviços, além dos inicialmente previstos. No entanto, comprometido com sua missão de preservar, comunicar e garantir o acesso ao patrimônio histórico, o Museu da República, com aval das equipes técnicas que acompanham o projeto, retoma a visitação pública ao primeiro pavimento do Palácio." Sobre os trabalhos de prospecção: "A análise estrutural do Palácio foi conduzida desde março de 2025 pela empresa AF – Projetos de Engenharia, em parceria com a Resgate – Consultoria em Patrimônio e a InovaBC, sob coordenação da Mayerhofer & Toledo Arquitetura, responsável pelo projeto de restauração integral do Museu. A engenheira restauradora Sílvia Puccioni, responsável técnica pela atual fase do restauro estrutural, também atuou nas obras emergenciais realizadas nos anos 1980, após danos causados pelas obras do metrô. Sílvia destaca que o Palácio possui um sistema estrutural excepcional: 'É uma estrutura extremamente robusta, fruto de um projeto construtivo fantástico. Mas as condições atuais demandam intervenções cuidadosas, que estão sendo planejadas com rigor técnico e respeito absoluto ao patrimônio.' O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) mantém seu compromisso com a preservação desse bem tombado e com a salvaguarda do acervo do Museu, seguindo sua missão de promover o acesso à memória, à cultura e à história do Brasil." A previsão de reabertura integral do Palácio do Catete será anunciada conforme o avanço das obras de restauro. O Museu da República e o Ibram estão comprometidos com a preservação do Acervo Nosso Sagrado, acervo de grande relevância histórica e simbólica, no sentido de promover uma política de reparação aos Povos de Terreiro e às comunidades tradicionais de matriz africana, representados pelas peças que o compõem. Nesse processo, o Museu mantém sua missão de assegurar o acesso à cultura e à história republicana do país, orientado pelos princípios museológicos de preservação da memória social e de enfrentamento das práticas de racismo religioso e institucional." *Estagiária sob supervisão de João Gonçalves

FONTE: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/09/24/lideres-religiosos-e-museu-vivem-impasse-sobre-gestao-de-pecas-sagradas.ghtml


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